Quando os comboios usavam coroa
O comboio da família real portuguesa está no Entroncamento em trabalhos de conservação para reaver o glamour dos tempos em que nele viajavam D. Luís e D. Maria e o futuro rei D. Carlos. Vai partir para Utreque, onde será visto por cerca de 500 mil pessoas na exposição internacional de comboios reais. Por Carlos Cipriano (texto) e Rui Gaudêncio (fotos)
E o Comboio Presidencial?
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Maria de Fátima Godinho cobre o acolchoado com tule e aplica-lhe um aspirador portátil. Desta forma só aspira o pó, protegendo a fibra dos veludos e os gorgorões de seda com galões e franjas. "Depois de aspirar, como isto está tudo muito ressequido, é preciso passar com uma escova a vapor para dar brilho e ficarem os veludos menos quebradiços", explica a técnica de conservação e restauro de têxteis, que trabalha no interior da luxuosa carruagem D. Maria Pia.
A seguir é preciso ainda passar com uma escova de marta, no sentido do veludo. Um trabalho de relojoeiro, paciente, que dá nova vida a têxteis que estavam mortos, em que não se pode usar água nem abrasivos. Só sabão de coco e lissapol. "Isto não é restauro. É só conservação. Para restaurar o salão todo eram precisos quatro anos. Olhe, a cama da rainha é a que está em pior estado." Maria de Fátima levanta os panos protectores e mostra como os requintados tecidos estão gastos. É normal. A rainha dormiu ali muitas noites. As viagens eram longas e, afinal, este é um comboio-casa, com quartos, salas, casas-de-banho e um furgão onde se cozinhavam as refeições.
Mesmo parcialmente coberto de panos e com peças desmontadas, o Salão D. Maria Pia não perde o seu esplendor. Foi esta carruagem, construída em 1858 em Bruxelas pela Compagnie Générale de Matériels de Chemins de Fer, que despertou a atenção dos responsáveis pelo museu ferroviário holandês de Utreque que estão a preparar a exposição Royal Class, Regal Journeys (de 14 de Abril a 10 de Setembro de 2010).
"Inicialmente pensavam pedir-nos apenas esta carruagem, mas quando viram o comboio completo mudaram de ideias e decidiram levar toda a composição", contou Jorge Custódio, director do Museu Nacional Ferroviário, que tem a sua no Entroncamento.
Dúvidas
"O que os deslumbrou foi a existência de tracção, a locomotiva D. Luiz, e a relação muito própria entre esta e as carruagens D. Maria Pia e do príncipe [D. Carlos], ou seja, pai, mãe e filho - a família real representada numa só composição", diz o mesmo responsável. A carruagem D. Maria Pia terá sido oferecida pelo rei de Itália, Vítor Emanuel, à sua filha em 1862, como dote de casamento com o rei D. Luís I de Portugal.
Pelo menos é o que reza a história oficial. Mas Nélson Oliveira, investigador e presidente da Associação Portuguesa dos Amigos dos Caminhos-de-Ferro (APAC), acha que não, tendo em conta que já em 1859, quatro anos antes do casamento de D. Luís, a imprensa elogiara a luxuosa carruagem real onde viajara Sua Alteza, o rei D. Pedro V (irmão de Luís), na inauguração da linha de caminho-de-ferro do Barreiro a Vendas Novas. "Ou esta carruagem desapareceu de vez, porque nunca mais dela se ouviu falar, ou então era mesmo esta, a que viria a ser designada por D. Maria Pia", conclui. De resto, as datas coincidem: construção do veículo em 1858 na Bélgica, estreia na Companhia dos Caminhos-de-Ferro ao Sul do Tejo em 1859, casamento de D. Maria em 1862. O director do museu não nega esta possibilidade e admite que há muita investigação a fazer na área.
Mas já quanto ao igualmente luxuoso Salão do Príncipe, não restam dúvidas de que se tratou de uma prenda da rainha D. Maria Pia ao seu filho mais velho, D. Carlos, quando este completou 14 anos. É uma carruagem de três eixos, com três compartimentos, composta por uma antecâmara, um salão principal e uma divisão com instalações sanitárias, possuindo ainda uma varanda coberta numa das extremidades. A sua ficha técnica no museu faz o inventário dos materiais nela utilizados: ferro, cobre, madeira, vidro, seda, veludo, porcelana.
Mais do que as histórias reais, para os holandeses contou sobretudo a beleza e raridade dos veículos. A locomotiva, por exemplo, é uma peça única. Não faz parte de nenhuma série e quando foi fabricada, em 1862, ganhou a medalha de ouro na Exposição Internacional de Londres. Estava-se então em pleno apogeu da Revolução Industrial e no seu berço, a Inglaterra, as inovações eram contínuas, ao ponto de todos os anos haver exposições que mostravam os progressos da engenharia. E a Beyer Peacock & Co., Manchester, que produzira a locomotiva que viria a rebocar os reis portugueses, orgulhava-se dos galardões obtidos.
Era, pois, uma máquina muito avançada para a época a que em Portugal recebeu o nome de D. Luiz, ele próprio um entusiasta do caminho-de-ferro, uma novidade que tardara a chegar a Portugal. Só em 1856, trinta anos depois do resto da Europa, o país inaugurara a sua primeira linha, de Lisboa ao Carregado. Quando a potente e airosa D. Luiz chega a Portugal, a rede contava pouco mais de 200 quilómetros: Lisboa a Abrantes, e Barreiro a Vendas Novas e Setúbal.
O próprio Comboio Real acompanhará a sua expansão, participando os reis em sucessivas inaugurações. Em Setembro de 1863 a composição viaja a Elvas para estrear a linha do Leste, e em 1877 atravessa o Douro na viagem inaugural da Ponte D. Maria Pia, projectada por Gustavo Eiffel.
Ou não. Nélson Oliveira recorda que, para tal, o comboio teria de atravessar o Tejo de barco, porque não havia ainda linhas férreas entre o Sul e o Norte. E como havia um outro comboio real do lado norte do rio, é pouco provável que tal tenha acontecido. No fundo, o comboio real que chegou aos nossos dias terá estado sempre afecto ao caminho-de-ferro do Sul e por isso a maior parte das viagens realizadas foram, sem dúvida, entre o Barreiro e Vila Viçosa, sobretudo já durante o reinado de D. Carlos, que passava longos períodos naquela vila alentejana. O regicídio ocorreria pouco depois de os reis regressarem de uma dessas deslocações. Depois de 1908, poucas vezes terá saído do Barreiro, a não ser nalguma visita ocasional do sucessor, D. Manuel, ao Alentejo.
Com a implementação da República, os salões D. Maria Pia e do Príncipe são resguardados discretamente para escaparem a uma mais que provável vandalização durante o período revolucionário.
Jorge Custódio destaca a sensibilidade de alguns ferroviários da época para o valor patrimonial daquelas peças numa altura em que ainda nem sequer se falava em património ferroviário, um conceito que só viria a ser inventado após a II Grande Guerra.
Já a locomotiva D. Luiz, que de resto rebocava comboios regulares quando não estava de serviço à composição real, sobreviveu à República, mas acabou os seus dias a rebocar comboios suburbanos na linha do Sul, sendo retirada de serviço na década de trinta.
Durante 20 anos ficou abandonada, a criar ferrugem, e só sobreviveu porque nessa altura as sucatas não eram o negócio fluorescente que hoje aparentam. E também porque em 1956 se comemorou o centenário do caminho-de-ferro em Portugal e as autoridades resolveram recuperá-la três anos antes, não só para ficar apresentável para figurar num museu como para voltar a funcionar. É, aliás, esta locomotiva que encabeça um desfile comemorativo de comboios, no Carregado, perante as mais altas instâncias do Estado Novo.
Só dois comboios
Depois disso tem estado, tal como o resto da composição, na secção museológica de Santarém, de onde saiu em Janeiro deste ano para esta segunda operação de conservação no Entroncamento. O director do museu diz que em vez de quatro peças museológicas, a locomotiva, o tênder e os dois salões estão inventariados como uma única peça museológica, "um comboio emblema que representa uma época história específica".
Na Holanda, tudo indica que esta embaixada será um sucesso. Não só pelo interesse já demonstrado por aquele país, mas porque haverá apenas dois comboios reais completos em exposição: o português e o holandês da rainha Juliana e do príncipe consorte Bernhard.
As restantes peças são veículos únicos, embora não menos distintos. Exemplos: a carruagem real da rainha Adelaide (1842), vinda expressamente do museu de York (Inglaterra), o salão do rei Boris III (1938), que viajará da Bulgária, o veículo congénere do príncipe Fernando (1910), que virá da República Checa, e a carruagem dos reis Gustavo e Sílvia (1930), da Suécia. Para a Holanda serão ainda expedidos o salão do czar Alexandre (1870), que está exposto num museu finlandês, a carruagem real do Império Áustro-Húngaro (1858) e ainda, da vizinha Bélgica, o salão do rei Alberto I (1912).